sábado, 1 de agosto de 2015

AS VÁRIAS PERSONAS QUE A MINHA FILHA PODE SER - EPISÓDIO 2 "CLAIRE"

Minha esposa está grávida. Virá aí uma menininha. Apesar de já estar com 20 semanas, ainda não temos o nome da mais nova gatinha do pedaço em mente. Várias foram as sugestões. Vou aproveitar algumas delas e criar estórias acerca do que penso que serão suas personas conforme o nome escolhido. Segundo episódio: "Claire".

"Só uma história de amor tão inventiva e bonita para me convencer a pôr um nome internacional em uma filha"


A dedicatória


Era três da tarde quando Claire recebeu a ligação da Escola de Ballet Arte e Corpo. Pela quarta vez no mês, Ana, sua filha de 5 anos, brigava no local.

Dessa vez Claire se mostrava especialmente irritada. A motivação da briga de Ana foi que uma amiguinha disse que "o Fluminense fedia". Essa maldita obsessão por esse time é coisa de papai, praguejava Claire, enquanto se dirigia ao local.

Presumindo o esporro que tomaria, Ana começou a se defender, eloquentemente para uma criança tão pequena. Aquela fluidez com as palavras amenizou a raiva de Claire e enquanto a menina fazia sua defesa um filme passou por sua cabeça no trajeto que fazia de volta pra casa.

Lembrou-se da gravidez, da cara de bobos dos avós, da barriga crescendo... Lembrou-se da roupinha especialmente escolhida para a saída da maternidade: Um bodyzinho rosa, com um babado em roxo à frente, semelhante a uma sainha de ballet, grande paixão de Claire.

Lembrou-se do parto difícil, da cesariana, e do bodyzinho do Fluminense em que ela saiu do hospital (o único que o avô lembrou de trazer). Aquele body, segundo Claire, trazia a "maldição futebolística" para a vida de Ana. Desde então a pequena é muito mais dada ao esporte bretão do que a arte advinda da Renascença.

Aninha, nome dado em homenagem a Anna Beatriz, prima e "mãe adolescente" de Claire, estava no banho, sozinha, gozando de uma quase independência. Ao longe sua mãe ouviu um barulho, semelhante a um cântico futebolístico qualquer. Bufou, mas decidiu não interferir.

Ao fim do noite, após a última refeição, Claire decidiu interpelar Aninha. Perguntou se ela preferia o balé ou o futebol. A menina mostrou-se confusa, parecendo não estar preparada a escolher a segunda opção e magoar a mãe. Claire, por sua vez, captou a dúvida da filha. Amou sua sensibilidade e a pôs na cama encerrando o assunto por enquanto.

Foi para a sala assistir TV em busca de sono, hábito contraído da mãe, e se pegou assistindo filmes que já havia visto milhares de vezes, hábito contraído do pai. Zapiando os canais, contudo, acabou caindo em um cujo filme se chamava 'Te amarei para sempre'. Sorriu. 

Segundo contas pré oficiais, aquela deveria ser a 628ª vez que assistia ao filme que deu origem a seu nome: Claire Abshere Góes-Bahiense (hífen, um estilo obtido à fórceps pelo pai).

Correu até a estante. Pegou o livro 'A mulher do viajante no tempo' devidamente autografado pelo pai como se Audrey Niefegger (a autora do livro) fosse, e releu a dedicatória com palavras doces e encorajadoras escritas por seu velho.

O pai previu inteligência, clamou por determinação e desejou muita paz e amor. Claire chorou ao perceber que as determinações do pai, mesmo aos atropelos, haviam se confirmado. Bateu saudade dele e da mãe, mesmo os tendo visto há dois dias. Ligou. Não foi o pai que atendeu e sim a mãe.

Conversaram amenidades, comentaram as travessuras de Ana, reclamaram de ainda não terem comprado o presente do chá de bebê do terceiro filho de Caio... Falaram sobre política, e de quanto o presidente Neymar da Silva ajudara o país, mesmo tendo sido eleito sob desconfiança. E riram quando lembraram que Sandro sempre dizia que o que o fez eleito "foi aquela passagem decisiva pelo Flu em 2026". Claire ouviu pela nonagésima vez alguma piada de sua mãe sobre o nome da moeda ter sido trocada de Real para Lula por decisão do polêmico político de mesmo nome em seu terceiro mandato de presidente em 2018. Até que a conversa chegou - e sempre chegava - em seu ponto mais peculiar quando mãe e filha conversavam: A dança, mais especificamente o balé.

Claire mostrou-se uma aficcionada pela arte desde sempre. Entrou na escolinha com precoces três anos. Aos doze era considerada prodígio. Entrou sozinha para a religião. Dançava na igreja e virou líder do grupo de coreografias mesmo sendo menor de idade. Passou quatro anos estudando na Fafi... Claire não se lembrava muito bem aonde toda aquela paixão tinha se perdido. Onde toda a certeza se dissipou. Onde as coisas mudaram. Viu na gravidez de Ana a certeza de que penduraria as sapatilhas, mas esqueceu de avisar à sua cabeça e ao seu coração. Ao tocar no nome da filha, Claire disse a mãe que pensava em tirar a filha do balé. A mãe disse para esperar e que seria sensato tentar conciliar as paixões da pequena. Claire assentiu. Perguntou pelo pai. Roncando. Muito. Respondeu a mãe resignada. Mandou beijos para ele e para Bento. Desligou.

Dez anos depois Ana mudou-se para São Petersburgo, Rússia, sede do Ballet Bolshoi.

Claire casou-se de novo, teve um novo filho (chamado convenientemente de Henry) e decidiu, incentivada pela filha, montar uma escola de balé. Sua mãe mudou-se para sua casa há dois anos.

Seu pai vibrava, intensamente, do céu. Sua filha realmente havia conquistado tudo o que ele desejara naquela dedicatória.

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