quinta-feira, 19 de setembro de 2013

CONTO 'FLORES MORTAS'


FLORES MORTAS

Natalie era o maior fenômeno literário da época. Com apenas 16 anos, a garota havia tido o mérito de trazer a poesia de volta à fama e as grandes vendas. Tudo isso fruto de ensaios que a jovem colocara em seu blog (campeão de acessos), e que tornou-se um livro best seller em vendas.

Desiludida e pessimista com a vida, a característica da criação de Natalie era uma poesia triste, mórbida e depressiva. Sua visão de mundo passeava pelas mazelas da vida, sofrimentos do coração, morte, perdas, escuridão e lágrimas.

Sua própria vida servia de combustível para a criação de seus textos. Sem a mãe, morta há seis anos vítima de câncer, com seu pai com sérios problemas com álcool, e com seu próprio vício em analgésicos e antidepressivos, Natalie colocava todas as suas frustrações no papel e, sem perceber, acabava expondo a tristeza que milhares de pessoas também sentiam, mas não tinham coragem, ou qualidade, para expressar.

Obesa e solitária, a garota era constante vítima de bullying na escola, pois, apesar de seu grandioso sucesso, a menina permanecia anônima. Seu espaço era sempre algum canto, o mais escondido possível, o mais distante possível da alegria. Cada hora era, para a autora, uma lágrima que a sofreguidão de sua vida insistia em colocá-la em seus olhos.

Paralelamente à tristeza de sua vida, sua fama só aumentava. Uma famosa gravadora acabara de fazer um acordo com Natalie e a moça agora também passava a ser compositora musical. Novidade num espaço onde letras musicais pouco acrescentavam, Natalie logo também obteve êxito ali.
Um famoso empresário passou a tomar conta da carreira de Natalie e propôs uma polêmica solução para que a garota continuasse no anonimato, mas, ao mesmo tempo, continuasse produzindo. Uma atriz foi contratada para fingir ser Natalie e o belo rosto da garota passou, rapidamente, a estar em out doors, contra capas de livro, e no blog.

A beleza da Natalie de mentira só fez a fama das obras da Natalie de verdade aumentarem. Percebendo que a beleza física da atriz se sobressaia à beleza das palavras que vinham de seu coração, Natalie percebeu-se ainda mais triste.

Sentindo-se enojada por participar de esquema tão mesquinho, a garota se mutilava, seja agredindo fisicamente a si própria, seja comendo incontrolavelmente, ou simplesmente chorando e chorando.

A maioria do dinheiro que ganhava ia ralo abaixo, uma vez que a garota “doava” seus rendimentos a mendigos, viciados ou loucos. Tal atitude inusitada era, para Natalie, uma espécie de compensação, uma cura, mesmo que paliativa, para as mazelas que o mundo fazia a seus moradores.
 À medida que se enterrava em sua tristeza, mais Natalie criava belíssimas composições. Estando em alto grau de depressão, a garota já não saía de seu quarto. Normalmente no escuro, a menina vivia à base de lanches de fast food entregues em casa, caixas de bombons, conhaques e coisas do tipo.

Passou a cortar-se e estava ainda mais obesa e confusa por causa das maiores doses de antidepressivos. Seu empresário, preocupado com sua galinha dos ovos de ouro, vivia a tentar visitá-la, mas a garota não o deixava entrar.

Em um dia o empresário decidiu arriscar e levou a Natalie fake para conhecer a verdadeira Natalie. Curiosa, a jovem deixou que a atriz entrasse. A falsa Natalie se chamava Vanessa e admitiu não conhecer tanto de literatura quanto a personagem que encenava. A atriz disse ainda que as perguntas feitas por repórteres e entrevistadores eram previamente definidas, por isso ela tinha tão bom desempenho e desenvoltura em entrevistas, finalizando com um “sua imagem está muito bem resguardada” crendo que isso faria com que Natalie se sentisse melhor.

Tal encontro só deixou a autora ainda mais enojada de si, e da sociedade. Decidida a por um fim em tudo Natalie escreveu o que seria supostamente seu último poema:

Flores mortas.

Em todo o deserto que existe dentro da gente.
Existe um oásis regado a desilusão.
Que só serve para sangrar o coração e matar a alma.
E, no meio das flores mortas que se espalhavam por meu jardim, vi você.
Rindo de tudo e achando que esse mundo nojento é legal.
Sem saber que sentir-se mal é tão mal que torna-se bom.
E quando chega-se a esse ponto de achar que ser ruim é virtude.
Percebe-se que é hora de acabar, pois de mal já basta este tudo.

Natalie desceu até a sala e despediu-se, à distância, de seu pai, que estava jogado no sofá aparentemente bêbado. Voltou a seu quarto, pegou uma garrafa de Vodca e tomou todos os comprimidos de antidepressivo junto à bebida e caiu ao chão fortemente.

Queria saber como era a morte e estimava que tal situação não deveria ser pior do que sua estadia na Terra. Pensava que, se houvesse um Deus, que Ele seria benevolente. Talvez até sábio. Sábio o suficiente para respondê-la de todos os porquês que a afligiam. Do porquê de tanta sujeira e maldade. Do porquê de sua infinita má sorte.

Quando abriu os olhos viu-se em um ambiente branco que muito parecia esterilizado e neutro. Procurou por Deus, ou anjos, ou coisas do tipo. Nada. Levantou a dolorida cabeça e percebeu-se deitada, ligada a aparelhos que faziam um estranho e irritante barulho.

Uma senhora negra e gorda entrou no ambiente e sorrindo acenou para Natalie. Seu pai e seu empresário entraram em seguida. A enfermeira, ao perceber a confusão que se instaurava no cenho da menina, tratou de explicar a situação: “Seu pai a salvou! Ele ouviu o barulho da queda e arrombou a porta. Foi um milagre os médicos conseguirem te reanimar...”

Seu pai a olhava constrangido, pois sabia do intuito da filha e, apesar de tudo, realmente percebia que morrer talvez fosse o melhor remédio para Natalie. Ela retribuiu o olhar com raiva e cólera. O empresário disse que ela iria para uma clínica se desintoxicar e garantiu “segurar as pontas” sem problemas.

Mesmo a contra gosto Natalie se internou na tal clínica e foi lá que conheceu Gabriel. Jovem, loiro de cabelos encaracolados e grandes olhos azuis, o rapaz seria o enfermeiro da garota. Sensível e inteligente, Gabriel logo tecia longas conversas com Natalie e a amizade dos dois só crescia.

Foi dele a mão a qual a garota segurava nos momentos mais difíceis. Na luta contra os vícios e nos momentos em que a tristeza insistia em acometê-la. Ainda na clínica Gabriel a pediu em namoro. Beijaram-se deitados no meio do jardim que estava recheado de gerânios vermelhos e perfumados. O sol brilhava forte, mas uma fria brisa amenizava seu calor. Foi tudo perfeito. Flores vivas brotavam no peito de Natalie. Ela havia renascido, vinda direto do inferno para o paraíso.

Ao saber que ‘Flores mortas’ tornara-se um grande sucesso na voz de uma famosa cantora de rock, Natalie compôs ‘Flores vivas’, um texto que expunha exatamente o oposto de seu grande sucesso. Um texto que falava de amor, de confiança e de recomeço.

Flores vivas

No deserto que existe em nós todos.
Há um oásis regado a esperança.
De água farta, gelada e acalmante.
Que nos mostra que nem tudo está perdido.
E que a nossa vida é feita de flores vivas criadas no peito.
Com ramos que descem até nossa alma, refrescam nossa mente.
E afagam os nossos corações.

Feliz, a garota compôs como nunca. O amor passou a ser sua maior inspiração. Limpa e mais saudável deixou a clínica e entregou todos os seus escritos a seu empresário, aguardando ansiosamente que sua nova eu, e sua nova criação, fizessem o sucesso esperado e transmitissem, em vez de dor e amargura, uma mensagem de amor e esperança.

Um livro chamado ‘Flores vivas’ foi lançado e várias de suas poesias foram parar nas vozes dos mais famosos cantores. Tudo foi um fracasso. Acostumados à visão deprimida da vida a qual Natalie se especializou em narrar, os fãs execraram essa nova autora.

Sem dinheiro e repentinamente anônima, Natalie percebeu do porquê de seu repentino fracasso: Ela estava amando, e feliz. Logo via-se numa intrínseca encruzilhada: Ou continuava com Gabriel e perdia de vez sua fama ou o largava e reatava com a dor e a tristeza.


Hoje Natalie chegou à marca de um milhão de exemplares vendidos de seu mais novo livro, chamado ‘Matando o amor’, coletânea de poesias em que a autora exprime toda a tristeza de ter o amor e jogá-lo fora, toda a tristeza de saber que está na maior das prisões: A prisão de si mesmo. 

Um comentário:

  1. É essa tal prisão, que nem mesmo o melhor amigo você poderá contar passagens de sua infãncia e vida. Os anos se passaram e hoje, tenho 44 anos, e, na maioria das vezes, ainda acho que me aparecerá um sorriso agraciado por rugas expressivas trazendo o passado, fazendo que viva algo imperfeito no presente.

    Cleber Lima de Moura

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