FLORES MORTAS
Natalie
era o maior fenômeno literário da época. Com apenas 16 anos, a garota havia
tido o mérito de trazer a poesia de volta à fama e as grandes vendas. Tudo isso
fruto de ensaios que a jovem colocara em seu blog (campeão de acessos), e que
tornou-se um livro best seller em vendas.
Desiludida
e pessimista com a vida, a característica da criação de Natalie era uma poesia
triste, mórbida e depressiva. Sua visão de mundo passeava pelas mazelas da
vida, sofrimentos do coração, morte, perdas, escuridão e lágrimas.
Sua
própria vida servia de combustível para a criação de seus textos. Sem a mãe,
morta há seis anos vítima de câncer, com seu pai com sérios problemas com
álcool, e com seu próprio vício em analgésicos e antidepressivos, Natalie
colocava todas as suas frustrações no papel e, sem perceber, acabava expondo a
tristeza que milhares de pessoas também sentiam, mas não tinham coragem, ou
qualidade, para expressar.
Obesa
e solitária, a garota era constante vítima de bullying na escola, pois, apesar
de seu grandioso sucesso, a menina permanecia anônima. Seu espaço era sempre
algum canto, o mais escondido possível, o mais distante possível da alegria.
Cada hora era, para a autora, uma lágrima que a sofreguidão de sua vida
insistia em colocá-la em seus olhos.
Paralelamente
à tristeza de sua vida, sua fama só aumentava. Uma famosa gravadora acabara de
fazer um acordo com Natalie e a moça agora também passava a ser compositora
musical. Novidade num espaço onde letras musicais pouco acrescentavam, Natalie
logo também obteve êxito ali.
Um
famoso empresário passou a tomar conta da carreira de Natalie e propôs uma
polêmica solução para que a garota continuasse no anonimato, mas, ao mesmo
tempo, continuasse produzindo. Uma atriz foi contratada para fingir ser Natalie
e o belo rosto da garota passou, rapidamente, a estar em out doors, contra
capas de livro, e no blog.
A
beleza da Natalie de mentira só fez a fama das obras da Natalie de verdade
aumentarem. Percebendo que a beleza física da atriz se sobressaia à beleza das
palavras que vinham de seu coração, Natalie percebeu-se ainda mais triste.
Sentindo-se
enojada por participar de esquema tão mesquinho, a garota se mutilava, seja
agredindo fisicamente a si própria, seja comendo incontrolavelmente, ou
simplesmente chorando e chorando.
A
maioria do dinheiro que ganhava ia ralo abaixo, uma vez que a garota “doava”
seus rendimentos a mendigos, viciados ou loucos. Tal atitude inusitada era,
para Natalie, uma espécie de compensação, uma cura, mesmo que paliativa, para
as mazelas que o mundo fazia a seus moradores.
À medida que se enterrava em sua tristeza,
mais Natalie criava belíssimas composições. Estando em alto grau de depressão,
a garota já não saía de seu quarto. Normalmente no escuro, a menina vivia à
base de lanches de fast food entregues em casa, caixas de bombons, conhaques e
coisas do tipo.
Passou
a cortar-se e estava ainda mais obesa e confusa por causa das maiores doses de
antidepressivos. Seu empresário, preocupado com sua galinha dos ovos de ouro, vivia
a tentar visitá-la, mas a garota não o deixava entrar.
Em
um dia o empresário decidiu arriscar e levou a Natalie fake para conhecer a verdadeira
Natalie. Curiosa, a jovem deixou que a atriz entrasse. A falsa Natalie se
chamava Vanessa e admitiu não conhecer tanto de literatura quanto a personagem
que encenava. A atriz disse ainda que as perguntas feitas por repórteres e
entrevistadores eram previamente definidas, por isso ela tinha tão bom
desempenho e desenvoltura em entrevistas, finalizando com um “sua imagem está
muito bem resguardada” crendo que isso faria com que Natalie se sentisse
melhor.
Tal
encontro só deixou a autora ainda mais enojada de si, e da sociedade. Decidida
a por um fim em tudo Natalie escreveu o que seria supostamente seu último
poema:
Flores mortas.
Em
todo o deserto que existe dentro da gente.
Existe
um oásis regado a desilusão.
Que
só serve para sangrar o coração e matar a alma.
E,
no meio das flores mortas que se espalhavam por meu jardim, vi você.
Rindo
de tudo e achando que esse mundo nojento é legal.
Sem
saber que sentir-se mal é tão mal que torna-se bom.
E
quando chega-se a esse ponto de achar que ser ruim é virtude.
Percebe-se
que é hora de acabar, pois de mal já basta este tudo.
Natalie desceu até a sala
e despediu-se, à distância, de seu pai, que estava jogado no sofá aparentemente
bêbado. Voltou a seu quarto, pegou uma garrafa de Vodca e tomou todos os
comprimidos de antidepressivo junto à bebida e caiu ao chão fortemente.
Queria saber como era a
morte e estimava que tal situação não deveria ser pior do que sua estadia na
Terra. Pensava que, se houvesse um Deus, que Ele seria benevolente. Talvez até
sábio. Sábio o suficiente para respondê-la de todos os porquês que a afligiam.
Do porquê de tanta sujeira e maldade. Do porquê de sua infinita má sorte.
Quando abriu os olhos
viu-se em um ambiente branco que muito parecia esterilizado e neutro. Procurou
por Deus, ou anjos, ou coisas do tipo. Nada. Levantou a dolorida cabeça e
percebeu-se deitada, ligada a aparelhos que faziam um estranho e irritante
barulho.
Uma senhora negra e gorda
entrou no ambiente e sorrindo acenou para Natalie. Seu pai e seu empresário
entraram em seguida. A enfermeira, ao perceber a confusão que se instaurava no
cenho da menina, tratou de explicar a situação: “Seu pai a salvou! Ele ouviu o
barulho da queda e arrombou a porta. Foi um milagre os médicos conseguirem te
reanimar...”
Seu pai a olhava
constrangido, pois sabia do intuito da filha e, apesar de tudo, realmente percebia
que morrer talvez fosse o melhor remédio para Natalie. Ela retribuiu o olhar
com raiva e cólera. O empresário disse que ela iria para uma clínica se
desintoxicar e garantiu “segurar as pontas” sem problemas.
Mesmo a contra gosto
Natalie se internou na tal clínica e foi lá que conheceu Gabriel. Jovem, loiro
de cabelos encaracolados e grandes olhos azuis, o rapaz seria o enfermeiro da
garota. Sensível e inteligente, Gabriel logo tecia longas conversas com Natalie
e a amizade dos dois só crescia.
Foi dele a mão a qual a
garota segurava nos momentos mais difíceis. Na luta contra os vícios e nos
momentos em que a tristeza insistia em acometê-la. Ainda na clínica Gabriel a
pediu em namoro. Beijaram-se deitados no meio do jardim que estava recheado de
gerânios vermelhos e perfumados. O sol brilhava forte, mas uma fria brisa
amenizava seu calor. Foi tudo perfeito. Flores vivas brotavam no peito de
Natalie. Ela havia renascido, vinda direto do inferno para o paraíso.
Ao saber que ‘Flores
mortas’ tornara-se um grande sucesso na voz de uma famosa cantora de rock,
Natalie compôs ‘Flores vivas’, um texto que expunha exatamente o oposto de seu
grande sucesso. Um texto que falava de amor, de confiança e de recomeço.
Flores
vivas
No
deserto que existe em nós todos.
Há
um oásis regado a esperança.
De
água farta, gelada e acalmante.
Que
nos mostra que nem tudo está perdido.
E
que a nossa vida é feita de flores vivas criadas no peito.
Com
ramos que descem até nossa alma, refrescam nossa mente.
E
afagam os nossos corações.
Feliz, a garota compôs
como nunca. O amor passou a ser sua maior inspiração. Limpa e mais saudável
deixou a clínica e entregou todos os seus escritos a seu empresário, aguardando
ansiosamente que sua nova eu, e sua nova criação, fizessem o sucesso esperado e
transmitissem, em vez de dor e amargura, uma mensagem de amor e esperança.
Um livro chamado ‘Flores
vivas’ foi lançado e várias de suas poesias foram parar nas vozes dos mais
famosos cantores. Tudo foi um fracasso. Acostumados à visão deprimida da vida a
qual Natalie se especializou em narrar, os fãs execraram essa nova autora.
Sem dinheiro e
repentinamente anônima, Natalie percebeu do porquê de seu repentino fracasso:
Ela estava amando, e feliz. Logo via-se numa intrínseca encruzilhada: Ou
continuava com Gabriel e perdia de vez sua fama ou o largava e reatava com a
dor e a tristeza.
Hoje Natalie chegou à
marca de um milhão de exemplares vendidos de seu mais novo livro, chamado ‘Matando
o amor’, coletânea de poesias em que a autora exprime toda a tristeza de ter o
amor e jogá-lo fora, toda a tristeza de saber que está na maior das prisões: A
prisão de si mesmo.