quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

CONTO 'CONFRONTO'



No sertão, isolado de tudo, o menino subnutrido, quase morto em pé, debaixo de sol escaldante se debate. Com sede e com fome não consegue muito, só viver. Por mais algumas horas, talvez dias...

Sua alimentação é pautada numa estranha combinação de água e barro que, depois de juntadas e secadas, viram um “biscoito de barro”. Sua sede é matada bebendo a mesma água barrenta que ainda relesmente umidifica o que um dia foi o conteúdo de um fundo poço.

A água, a cada dia, seca mais, e logo sua sede e fome não terão mais como ser combatidas. Desolado, o menino conta os minutos, sem esperança. Talvez até reste um pouco de esperança. Esperança em morrer com dignidade, sem sofrimentos...

Quem acompanha, atentamente, à saga do menino é um urubu. Com seu instinto animal percebe que está diante de uma “presa morta ainda viva” e espera, pacientemente, que a morte chegue às vias de fato.

O urubu acompanha tranquilamente a luta do menino enquanto esfrega mãos imaginárias aguardando ansiosamente o que comer. O urubu, caros, também padece de sede e fome, mas se vê mais capaz de aguentar o tempo. O tempo que o menino parece se ver derrotado, na batalha da vida contra a morte.

Paradoxalmente o menino vê no urubu o sonho de viver. A carne do asqueroso animal poderia ser a primeira que ele veria, e comeria, caso tivesse força para abater a ave. Mas não tem. Atentamente o menino olha para o bicho na expectativa que um mal abrupto acabe com ele.

Ele fantasia como degustaria o urubu. Talvez conseguisse fazer uma mini fogueira com pedras e pedaços de mato seco. Talvez até comesse o bicho cru mesmo. Não sabia como era o gosto de carne. E, a rigor, não sabia nem como sabia que tinha de cozinhar a carne antes de comê-la.

Enquanto isso o urubu também vislumbrava como começaria o banquete. Os olhos eram algo que o atraia muito. Decidiu que começaria por ali. Nem sabia se aguentaria esperar o processo de decomposição do pequeno corpo. Talvez ele comeria logo, sem esperar. Talvez ele não teria muito tempo se esperasse...

Quando abriu os olhos o menino viu o nada. A água secou. Não haveria mais o que beber e nem comer. O menino fechou os olhos. Quando os abriu de novo viu o urubu ainda mais perto de si. A saliva quase inexistente era a senha de que seu fim era próximo. Arrastou-se. O urubu não se afastou e eles ficaram mais próximos.

O cheiro de ambos era desconfortável como se os dois já estivessem em decomposição. Uma decomposição do descaso, do esquecimento... O menino fechou os olhos. Ele pensava em não abri-los mais e se entregar ao seu destino. Não sabia o que era felicidade porque nunca a teve, mas lamentava não comer aquela carne de urubu.

Se pudesse escolher uma coisa... Uma única coisinha, seria definitivamente comer aquele urubu. Aquele bicho preto, de bico esquisito. O cheiro era mais forte. Menino e urubu estavam a centímetros de distância, talvez até pudessem se tocar. Mas havia um respeito. O menino, num esforço extremo, levantou a cabeça. Olhou no fundo dos olhos do urubu.

Queria enxergar alguma coisa, mas o que viu foi um deserto vazio, inóspito, insípido e incolor. Tudo era gris e triste. O menino viu o tudo no nada. Quis chorar. Não havia lágrima. Quis gritar. Não havia voz. Quis morrer. Mas não tinha Deus... Quis morrer, mas...

O urubu parado olhava para a imagem parada de sua presa. Aquela em que ele cobiçou por tanto tempo. Padeceu-se em seu sentimento de bicho e foi tomado por uma esquisita revolta. Uma revolta pela impotência de si, do menino, de ambos, do mundo...

Quis voar, mas não tinha mais como, quis dizer, mas não tinha voz. O urubu, triste, não conseguia nem se debater. Decidiu não comer a presa em um último ato de respeito. Um respeito tardio. Digno. De honra... Deitou-se ao lado do menino. O fim chegaria para todos...

Nisso o menino abriu os olhos e viu seu algoz em processo de transformação. Aquele urubu, aquele bicho, virara seu amigo. Aquele bicho que aguardou sua morte para comê-lo não o faria mais. Desistiu. O urubu o amou.

O menino se compadeceu por alguns instantes, talvez segundos... Até que em um último golpe de força atingiu a cabeça da ave bem forte. O mais forte que sua fraqueza conseguia. Matou o urubu... Finalizou sua a sede com o sangue do bicho e comeu sua carne crua e com pelos ali mesmo.

Sabe... Nós humanos somos tão ingratos, animalescos e cruéis às vezes que um asqueroso urubu pode ser mais digno do que nós. Sabe, somos tão cruéis às vezes... Onde nossa “humanidade” vai parar?

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