No
sertão, isolado de tudo, o menino subnutrido, quase morto em pé, debaixo de sol
escaldante se debate. Com sede e com fome não consegue muito, só viver. Por
mais algumas horas, talvez dias...
Sua
alimentação é pautada numa estranha combinação de água e barro que, depois de
juntadas e secadas, viram um “biscoito de barro”. Sua sede é matada bebendo a
mesma água barrenta que ainda relesmente umidifica o que um dia foi o conteúdo
de um fundo poço.
A
água, a cada dia, seca mais, e logo sua sede e fome não terão mais como ser
combatidas. Desolado, o menino conta os minutos, sem esperança. Talvez até
reste um pouco de esperança. Esperança em morrer com dignidade, sem
sofrimentos...
Quem
acompanha, atentamente, à saga do menino é um urubu. Com seu instinto animal
percebe que está diante de uma “presa morta ainda viva” e espera,
pacientemente, que a morte chegue às vias de fato.
O
urubu acompanha tranquilamente a luta do menino enquanto esfrega mãos
imaginárias aguardando ansiosamente o que comer. O urubu, caros, também padece
de sede e fome, mas se vê mais capaz de aguentar o tempo. O tempo que o menino
parece se ver derrotado, na batalha da vida contra a morte.
Paradoxalmente
o menino vê no urubu o sonho de viver. A carne do asqueroso animal poderia ser a
primeira que ele veria, e comeria, caso tivesse força para abater a ave. Mas
não tem. Atentamente o menino olha para o bicho na expectativa que um mal
abrupto acabe com ele.
Ele
fantasia como degustaria o urubu. Talvez conseguisse fazer uma mini fogueira
com pedras e pedaços de mato seco. Talvez até comesse o bicho cru mesmo. Não
sabia como era o gosto de carne. E, a rigor, não sabia nem como sabia que tinha
de cozinhar a carne antes de comê-la.
Enquanto
isso o urubu também vislumbrava como começaria o banquete. Os olhos eram algo
que o atraia muito. Decidiu que começaria por ali. Nem sabia se aguentaria
esperar o processo de decomposição do pequeno corpo. Talvez ele comeria logo,
sem esperar. Talvez ele não teria muito tempo se esperasse...
Quando
abriu os olhos o menino viu o nada. A água secou. Não haveria mais o que beber
e nem comer. O menino fechou os olhos. Quando os abriu de novo viu o urubu
ainda mais perto de si. A saliva quase inexistente era a senha de que seu fim
era próximo. Arrastou-se. O urubu não se afastou e eles ficaram mais próximos.
O
cheiro de ambos era desconfortável como se os dois já estivessem em
decomposição. Uma decomposição do descaso, do esquecimento... O menino fechou
os olhos. Ele pensava em não abri-los mais e se entregar ao seu destino. Não
sabia o que era felicidade porque nunca a teve, mas lamentava não comer aquela
carne de urubu.
Se
pudesse escolher uma coisa... Uma única coisinha, seria definitivamente comer
aquele urubu. Aquele bicho preto, de bico esquisito. O cheiro era mais forte. Menino
e urubu estavam a centímetros de distância, talvez até pudessem se tocar. Mas
havia um respeito. O menino, num esforço extremo, levantou a cabeça. Olhou no
fundo dos olhos do urubu.
Queria
enxergar alguma coisa, mas o que viu foi um deserto vazio, inóspito, insípido e
incolor. Tudo era gris e triste. O menino viu o tudo no nada. Quis chorar. Não
havia lágrima. Quis gritar. Não havia voz. Quis morrer. Mas não tinha Deus...
Quis morrer, mas...
O
urubu parado olhava para a imagem parada de sua presa. Aquela em que ele
cobiçou por tanto tempo. Padeceu-se em seu sentimento de bicho e foi tomado por
uma esquisita revolta. Uma revolta pela impotência de si, do menino, de ambos, do
mundo...
Quis
voar, mas não tinha mais como, quis dizer, mas não tinha voz. O urubu, triste,
não conseguia nem se debater. Decidiu não comer a presa em um último ato de
respeito. Um respeito tardio. Digno. De honra... Deitou-se ao lado do menino. O
fim chegaria para todos...
Nisso
o menino abriu os olhos e viu seu algoz em processo de transformação. Aquele
urubu, aquele bicho, virara seu amigo. Aquele bicho que aguardou sua morte para
comê-lo não o faria mais. Desistiu. O urubu o amou.
O
menino se compadeceu por alguns instantes, talvez segundos... Até que em um
último golpe de força atingiu a cabeça da ave bem forte. O mais forte que sua
fraqueza conseguia. Matou o urubu... Finalizou sua a sede com o sangue do bicho
e comeu sua carne crua e com pelos ali mesmo.
Sabe...
Nós humanos somos tão ingratos, animalescos e cruéis às vezes que um asqueroso
urubu pode ser mais digno do que nós. Sabe, somos tão cruéis às vezes... Onde
nossa “humanidade” vai parar?